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o real arde

​O Real Arde, exposição coletiva apresentada pelo grupo Arte Socialmente Implicada no Centro Cultural da Justiça Federal - CCJF, Rio de Janeiro.

Artistas: Agrippina R. Manhattan, Ana B., Andressa Boel, Airan Carvalho, Celso Honório, Dôda Paranhos, Everson Verdião, Fernanda Morais, Fernando Porto, Júlia Saldanha, Luíza Donner, Marcel Alcantara, Marcelo Oliveira, Mayara Veloso, Rayssa Verissímo, V.C. e Vinicius Davi.

Curadoria: Bia Petrus e Bernardo Bazani 

Produção: Jacqueline Melo

O REAL ARDE reflete sobre a “brecha aberta entre o passado e o futuro”, nas palavras de Georges Didi-Huberman. Passados dois anos, de 2021 a 2023, de quando foi proposta esta exposição até os dias de hoje, tendo em meio a este tempo uma memória angustiada de sucessivas imagens de corpos mortos, pergunta-se o que ainda merece ser lembrado e o que se consegue esquecer. O mundo experimentou, dentro das desigualdades em que opera, mortes e dores em diferentes escalas, simultaneamente. O que se mostra aqui não são os fantasmas dessas memórias, mas o processo vivido de algo que nossos corpos nunca poderão esquecer.

 

Real é matéria cotidiana que permite intervenções diretas. O real, com artigo definido, é onde se concretiza a presença, o espaço e a circunstância. Algo em que o acontecimento pode roçar. O acontecimento, a partir das experiências que vivemos como grupo de estudos, é algo que suportou uma capacidade intensa de abertura para o desconhecido. Foi o que emergiu quando tudo que era conhecido foi circunstancialmente deslocado. O real pode ser o terreno vivo do social. As práticas levantadas do chão das ruas optam pelo real sem abrir mão da ficção, mas são capazes de rejeitar uma imaginação ensaiada ou domesticada.

 

Em 2020, a situação de impedimento das ruas imposta pelo isolamento social na circunstância da pandemia de COVID-19 e o contexto ameaçador de recrudescimento do conservadorismo no Brasil foram o mote para a criação do grupo de estudos Arte Socialmente Implicada. Um grupo heterogêneo, mas representativo da luta dos artistas em situação de vulnerabilidade, face à violência crescente contra corpos não-normativos – pessoas trans, não-binárias, indígenas, negras – e a cultura geral de um país.

 

Num tempo em que o Estado tentava nos matar, estabeleceu-se uma prática processual atenta aos tempos possíveis, às condições emocionais possíveis, num contexto duro e de desânimo. Feita por sujeitos que resistiram, pelos que sobraram, os que conseguiram ficar vivos. Meio a diferentes acordos que se colocavam e recolocavam para o grupo, em um exercício constante de construção do dissenso. O resultado disso, em um contexto tão incerto, foi uma trama, um emaranhado de questões que se misturam umas nas outras. Questões que erguem um corpo coletivo de bordas e limites pouco definidos, que ora interage em harmonia, ora engole a própria cauda.

 

Tentávamos acionar as ruas, mesmo que impedidas durante a pandemia, em diversas geografias. A cidade é o mais rico campo de forças dos embates sociais, estéticos e políticos brasileiros. No caso do Rio de Janeiro, uma cidade que ainda finge estar sob o controle do poder público, a rua é sem dúvida o palco político mais relevante que temos. Estávamos próximos às tensões da rua, ainda que fisicamente afastados dela. O que confere valor político às ruas é a criação de outros valores que podem nascer e permanecer, quem sabe, fora das lentes do poder até se estabelecerem.

 

Estamos diante de um conjunto de ações e acontecimentos vivos. O que importa aqui é a força de questionamento que essas ações comportam e a potência crítica que operam a partir da observação daquilo que desmontam. O que se apresenta como trabalho de artistas é o que arde na dimensão política das estratégias de resistência nos gestos vivos, nos corpos dos sujeitos e num corpo coletivo, frente a um real inflamado e incandescente, que queima e arde como brasa.

 

Os lugares trazidos para esta sala, em que cada um se moveu nas ações que se apresentam como registros, não estão colocados como algo a ser visto de cima, mas sim como aquilo que foi experimentado por dentro. Neste sentido, abrimos mão dos mapas, dos planos e dos projetos, e incorporamos os itinerários, os erros e os fracassos produzidos por corpos políticos, viventes e errantes, que ardem e vibram na urgência de algo, de um presente em destroços, mas que ensaiam gestos sobre as ruínas, olhares entre os ossos e palavras empunhadas contra o impossível.

 

Múltiplas operações, em tempos simultâneos, nos lugares sociais onde cada participante se move, animam essa forma de operar ainda difícil de descrever. Nos interessa o caráter impronunciável dessas operações. A impronunciabilidade reside nas coisas que ainda não têm nome, que são difíceis ou impossíveis de serem nomeadas. Operações que disputam a cidade de baixo para cima, em oposição aos gestos que decidem as cidades de cima para baixo.

 

Em um ato provocativo de desobediência, tornamos a olhar de cima aquilo que não se estabiliza, nos dando conta de que mesmo as linhas mais duras que desenham as cidades possuem alguma porosidade onde podemos nos infiltrar. Assim seguiremos: nos infiltrando nos projetos que não dão conta da (im)previsibilidade da cidade vivida, com gestos que emergem do chão das ruas. Este será sempre um retrato instável, em um eterno retorno do real. Negamos a morte em 2021 e seguiremos negando, à recusa daquilo que não cessa: “eles virão para nos matar, porque não sabem que somos imorríveis”, para ficarmos com Jota Mombaça.

 

Bernardo Bazani e Bia Petrus

Curadores

Exposição O Real Arde

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